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Entre o Mato e a Roça faz parte das minhas pesquisas com imagem nas roças de cacau. São fotografias que fiz inicialmente para os Meeiros do Cacau (LINK), e que foram incluídas também no meu doutoramento. O olhar e a forma de pensar por e com imagens aqui é a partir de uma visão integrada, ecológica, da vida nas roças, que envolve a vida orgânica, social e da mente.

ENTRE O MATO E A ROçA

Entre o Mato e a Roça é um nome que alude a um não lugar e, ao mesmo tempo, a um fluxo de transformações e de trocas. O Mato é planta rebelde que cresce de forma agreste, daquelas que nascem e desafiam a mão humana que tenta moldar a floresta. A Roça é a estrutura socioeconômica criada para se sobrepor à floresta tropical, com o objetivo de dominar e civilizar.

            O Mato é misturado, é orgânico, sua definição não é precisa, nem mesmo é uma categoria que se possa esgotar. O Mato pode trazer a cura através de suas ervas, pode ser um lugar abstrato que se situa fora da Roça[1], pode ser parte dela, pode ser labirinto, esconderijo, limite, o desconhecido mais próximo e dadivoso, pode ser lugar, coisa e até gente e entidade. 

Nas várias hipóteses de como pensar o Mato, pode-se associá-lo à floresta tropical, lugar a ser destruído e explorado para dar dinheiro e ceder espaço para as roças e para civilização. Mas há que se notar que o Mato também comporta várias relações. O mato era, por exemplo, para onde as pessoas negras escravizadas fugiam, requerendo do "proprietário" a contratação de um capitão do mato para recuperá-las. Esse capitão geralmente era um negro que conhecia o mato e sabia ver os sinais deixados pelos/as fugitivos/as.

Nessa lógica dualista entre floresta e civilização, o Mato é justamente o primeiro sinal de que a natureza não é passiva, e mesmo que o homem pós-moderno queira deixar estéreis os corpos e os espaços, a natureza vai reivindicar sua parte. O Mato vem, cresce em qualquer fissura de cimento, pelas paredes, no telhado e nos lugares mais improváveis. 

O Mato tanto reclama a sede das Roças onde moram as pessoas, como as plantações. Ele é o primeiro a invadir, a crescer, a reivindicar o local e a nos fazer entender que estamos ligados a fluxos e forças do universo, onde as superfícies estão em constantes trocas[2]. Ou seja, o Mato serve, nesse trabalho, para orientar a visão para a floresta, que foi e está sendo destruída, para a vida que renasce em cima do concreto, ou mesmo para tensionar a visão ocidental, dualista, que insiste em distinguir natureza e cultura.

Para pensar a Roça, é preciso situá-la em uma escala macro, já que foi implantada em diferentes países, para o plantio de monoculturas, usando mão-de-obra escrava, principalmente de negros/as africanos/as. Esse tipo de agricultura ficou conhecido como plantation e teve seu primeiro grande ciclo de produção mundial com o açúcar. A seguir foi o café e, por fim, entre os séculos XIX e XX, foi a vez do cacau.

No Brasil, o local escolhido para o plantio de cacau foi a capitania de São Jorge dos Ilhéus – essa região ficou conhecida como costa do cacau – localizada no sul da Bahia. As roças de cacau baianas tiveram primeiro a mão-de-obra de pessoas negras escravizadas que desbravaram a mata atlântica e plantaram o cacau, ao longo de décadas, mesmo depois da proibição do tráfico negreiro[3]. Os donos das terras eram conhecidos como coronéis. Fizeram fama de tanto esbanjar riquezas, maldades para com os/as trabalhadores/as e boemia. Os coronéis produziam suas riquezas com a monocultura, dentro da Roça, a partir de relações hierarquizadas, violentas e exploratórias. Ao analisar a evolução das relações de trabalho ao longo dos séculos XIX e XX, veremos que a situação do/a trabalhador/a da roça era análoga à de pessoas escravizadas.[4]  

A Roça pode ser vista como símbolo da construção humana da cultura que promove a civilização. Ela sintetiza a estrutura de uma pequena cidade, com barbearia, mercearia, farmácia, venda de ferramentas, açougue, cinema, loja de tecidos e tudo que  fosse preciso para os/as trabalhadores/as manterem sua sobrevivência sem ir para longe. Mas essa estrutura foi à falência na costa do cacau do Sul da Bahia, depois da crise da vassoura-de-bruxa[5], fungo responsável por reduzir a produção drasticamente. As roças ficaram semiabandonadas, quando não totalmente abandonadas. Os/as remanescentes acabaram convivendo com a Roça e o Mato, são pessoas ligadas à terra que trabalham, e/ou que poucas alternativas de sobrevivência vislumbram. Para tanto, estabeleceram outros tipos de contratos com os proprietários. 

Entre Mato e Roça é uma interpretação poética através de fotografias da realidade em mutação, no seu contínuo movimento de coexistir e se completar. As fotografias me fazem questionar e criticar o sistema de colonização enquanto ideia de civilização, de sociedade, de família e de construção de identidades de gênero fixas. Ao inserir o entre, penso nas agências que existem no mundo e que atuam como forças de transformação, tudo vai mudando e está ligado a um complexo organismo que funciona em rede.  

 

[1] VALVERDE, Paulo. Máscara, Mato e Morte: Textos para Uma Etnografia de São Tomé, compilação e prefácio de João de Pina Cabral, Oeiras, Celta Editora, 2000.

[2] INGOLD, Tim. trazendo as coisas de volta à vida: emaranhados criativos num mundo de materiais. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 18, n. 37, p. 25-44, jan./jun. 2012.

[3] MAHONY, M. A. “Instrumentos necessários”. Escravidão e posse de escravos no sul da Bahia no século XIX, 1822-1889. Afro-Ásia, 25-26(2001), 95 – 139.

[4] DANTAS, Emiliano. Os meeiros do cacau do sul da Bahia: trabalho, corpo e documentação. Itabuna: Via Litterarum, 2006.

[5] A vassoura-de-bruxa surge na região do sul da Bahia em 1989.

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